quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Que doce!


E todo domingo parecia começar do mesmo jeito: um sol meio intrometido na janela e uma vontade de ficar um pouco mais. Mas não nesse domingo. Levantou-se com uma vontade de comer qualquer coisa, qualquer coisa mesmo. O apetite veio misturado com o bom humor e uma euforia que não se sabia verdadeira ou sei lá o que.


Na casa só estavam ela e seu pequeno peixinho dourado, na sua laboriosa rotina. Passear entre o pequeno arbusto de plástico e o castelinho de pedra que mobiliavam seu cubículo de vidro. Ela fazia sempre o mesmo. Hoje, seria diferente. Era domingo, por Deus, o que é que se pode fazer num dia de domingo nesta cidade? Nada! Ou melhor, quase... Abriu as portas do guarda-roupas e escolheu a sua roupa mais clara, alguma coisa leve, que fosse alegre também, pra combinar com o seu estado. Vestiu-se enquanto cantarolava uma musica que ouvira num filme que tinha final feliz. Ouviu a musica e não esqueceu mais... e ali estava ela, passeando entre seus lábios quase constantemente sorridentes.


Disse tchau para o peixinho, para as coisas da casa que parecia mais gostosa do que nunca e saiu, fazendo com que as escadas cantassem num ritmo que havia determinado ser o ritmo do seu dia, um samba meio bossa-nova com base num som de brisa do mar. Fechou a portão e, do nada, aquele sol que a tinha despertado deu adeus. Tinha sido apenas a brecha de uma nuvem. Uns pingos gelados começaram a molhar sua camisa branca. Não achou ruim, pensou – Bom, faz algum tempo que não tomo banho de chuva mesmo. A medida que andava os pingos de chuva se tornavam mais freqüentes. Fechava os olhos de vez em quando e sentia o cheiro de terra molhada. Era fraco, o asfalto já tinha tirado quase toda terra de perto, mas ainda dava pra sentir alguma coisa. Se não era o cheiro que ela sentia, era pelo menos a lembrança que ela tinha do que era o cheio de terra molha, e era bom.


Um carro passou por ela e nessa altura algumas possas já tinha se formado. Você já imagina o que aconteceu não? Agora já não dava para ela ir a muitos lugares. Resolveu entrar na próxima rua, era a rua que dava caminho à casa de sua mãe. Estava vazia. Claro, domingo às 9 da manhã, manhã de chuva, não é de se esperar que as pessoas estejam na rua mesmo. Mas as casas estavam todas tão limpas. Era incrível que mesmo a pouca luz que existia nesse dia fazia com que as casas gotejantes fossem tão, tão...simplesmente reflexo do que tinha dentro dela.


Não demorou muito para chegar naquele portãozinho verde, meio enferrujado. Lá dentro um silêncio pouco habitual. Sua mãe era a melhor e mais procurada doceira daquelas regiões. Não tinha tempo ruim para aquela mulher. Sempre trabalhou duro e nunca deixou de fazer sempre a mesma pergunta para qualquer emburrado que chegasse perto dela – Vai um pedacinho de vida para melhorar esse doce? Era assim que sua mãe via seus doces. Pequenos pedaços de vida que serviam para melhorar as coisas. Isso porque ela sabia que nem todo mundo gostava de todo tipo de doce, e mesmo assim, até saber que gosta ou não, a pessoa prova do doce. Prova da vida. Se gosta, procura repetir e as vezes se lambuza, até chega a enjoar de tanto comer... se não gosta, não come mais, a não ser que seja enganado e abocanhe a guloseima.


A mãe fazia questão que a filha tivesse junto dela a chave de sua casa. Assim, Duda entrou correndo na casa da mãe. Correu por correr porque não estava com frio. Mesmo sendo cedo e não tendo o sol para aquecer sua caminhada molhada, estava se sentindo fresca, renovada e aquilo excluía qualquer idéia de frio. A casa estava completamente silenciosa. Só se ouvia o som da água no telhado de plástico transparente que a mãe resolvera colocar ano passado nos fundos da casa, para ficar mais claro. Em cima da mesa da cozinha tinha uma pequeno prato coberto com um pano xadrez. Em cima dele um bilhete:

Estes são especialmente para você minha filha.
São de uma receita nova que inventei.
Não deixei que ninguém provasse antes de você.
Lembre-se: são um pedacinho de vida... espero que eles possam melhorar o doce que é você.

Os olhos brilharam. Sempre dizia – Sou sua maior fã sabia? Se você deixar, vou ter dar prejú para o resto da vida! Levantou o paninho, olhou para os docinhos branco-amarelados em forma de bolinhas e enfiou, de uma só vez, uns três na boca. Tinham um gosto familiar, mas não conseguia se lembrar do que, parecia que já tinha comido algum outro doce com aquele gosto um dia, mas não, não era como esse... esse era meio crocante no começo, tinha uma capinha meio dura mas no fim ia ficando macio, e o seu meio era cremoso, suave. Era curiosos, interessantes, uma delícia!


Correu para o quarto de sua mãe com uns quatro docinhos na mão e mais uns dois na boca. Queria lhe dar um beijo e falar que ela era a melhor doceira do mundo e que queria que aquele doce tivesse o seu nome, já que tinha sido a primeira a experimentar aquela maravilha. Quando chegou perto da porta, andou devagar para não fazer muito barulho. Abriu a porta lentamente e enfiou a cabeça no quarto, como fazia quando era criança. Os olhos arteiros procurando onde a mãe estaria na cama para assim se deitar do lado vazio e lhe beijar a testa. Feito isto, lá estava ela, se enfiando pelo lençol. - Ah mamãe, os doces são deliciosos! Como a senhora consegue hein?


Duda passou a mão pelos cabelos de sua mãe. Depois, escorregou seus dedos pelo seu rosto que estava gelado. Estava gelado. Seus olhos pararam por um segundo no escuro. Sua mão também. Dez segundos depois sua mão já tinha passado pelas narinas e boca confirmando tudo.


Os docinhos, ou melhor, pedacinhos de vida, eram curiosos... jamais seriam provados novamente. Ou pelo fato de não se ter encontrado a receita ou por não se querer mais comê-los.