sábado, 18 de março de 2006

Uma testa e um dedo

- Não tem sentido nenhum.
- Então vai, faz isso mesmo que você disse. Eu só acho que você não tem coragem...
- Isso não é uma questão de coragem, é uma questão de princípios!
- Mas que princípios o quê! Ninguém precisa ter princípios pra colocar uma bala no meio da testa, só precisa ter uma testa e um dedo.
- Uma testa e um dedo são muito, mas muito pouco mesmo perto de um monte de gente dizendo pra você a vida inteirinha o que você pode ou o que você não pode fazer com a vida que, por um acaso, não é sua.
- Mas se a vida não é sua, é de quem então?
- Ah de qualquer um... dos meus pais, da minha cidade, da minha sociedade, sei lá...
- A minha vida é minha, não tem isso comigo não... se for assim eu to muito endividado, nunca paguei o aluguel!
-Você é que pensa. Você está pagando há muito tempo e faz isso sem nem perceber.
- Mas como, não, isso não, tá tudo errado isso aí que você ta falando, nada a ver.
- Seus pais te ensinaram a pagar desde quando você nasceu, acredite, já é inconsciente!
- Mas como se eu não sinto falta de nada?
- Isto é claro, você não pode sentir falta do que nunca teve não é? São muito pouco os que sentem falta...
- Eu não te entendo, não mesmo...
- Meu amigo, se é por isso mesmo que quero decidir por continuar ou não aqui, pra deixar de pagar esse tributo, como não entendes?
- O que você quer é se sentir livre da responsabilidade de lutar igual todo mundo pela vida. Pra falar a verdade, acho uma vergonha isso que você quer fazer, desistir assim...
- Agora é você quem esta exercendo o papel de cobrador? Não se vê pagando não é? Será que consegue perceber o que esta tentando tirar de mim?
- Você começa a me parecer louco, acho que nem você entende o que diz.
- É isso mesmo, você está tentando tirar de mim o que nunca teve, o que nunca tive também. A diferença entre nós dois é que consigo perceber a falta que me faz. Você? Acho que nunca nem deu falta mesmo.
- Mas do que é que você está falando homem?
-Rsrsrs, da liberdade meu amigo, da liberdade!
- Realmente, está louco. Como da liberdade? Estamos totalmente livres!
- Parabéns! Como você conseguiu chegar a essa conclusão? Ah, não fala não, me deixa adivinhar: Você nem está numa cela e nem tem algemas nas mãos? Ah faça-me o favor, você é muito mais esperto do que isso.
- Sou, sou mais esperto mesmo. E sou esperto o suficiente pra saber que não vai me adiantar tirar a minha vida por causa disso.
-Ah é, então o que é que você está fazendo com essa sua esperteza? Deixando ela guardada numa gaveta, por que eu não estou vendo você fazer nada pra mudar a situação.
-Ah ta, e você está fazendo o que, pode me dizer? Você acha que tirar a sua vida vai mudar alguma coisa?
- Pode não mudar nada, mas vai significar pra mim... vai mostrar que pelo menos uma vez eu pude escolher o que fazer, vai mostrar que uma vez fui livre e talvez continue... talvez só os suicidas conheçam a liberdade, talvez apenas eles tenham conhecido o que é realmente voar no espaço, sem nada que os impedisse, livres...
- Você não pode fazer isso, é loucura!
- Aí esta você de novo, senhor cobrador! O que que você acha, que tirando a minha liberdade você vai se sentir melhor?Acha que me igualando a você tudo fica certo? A liberdade que é tirada não serve para mais ninguém, não adianta, você não vai se sentir melhor. Ela some quando arrancada de quem a pertence, consumida... e todos continuam com fome, nunca se saciam, nunca se saciaram.
- Você não sabe mais do que está falando...
- Posso não saber, posso nem estar fazendo a coisa certa, mas estou decidindo, essa é a pura questão... Estou sentido minhas assas querendo voar, EU estou tomando a decisão, estou me sentindo livre...

Um comentário:

Anônimo disse...

Gostei do texto sobre o caderno novo. Acho que quando chegamos ao mundo somos cadernos novinhos, prontos para terem as folhas arrancadas pelo mundo.
Abraço